MANIFESTO
[...] aqueles que destruíram povos ou exterminaram tribos não foram mais crueis à espécie humana, ou mais prejudiciais à deterioração das cidades, do que os autores de livros vulgares ou editores de opiniões baixas
Sami Joaquim Racy, 1911
No começo do século XX, São Paulo era uma cidade em franca expansão econômica e cultural. Metrópole internacional, repleta de contradições e violências, São Paulo era uma confusão de línguas e comunidades. Entre os bairros proletários como o Brás e a Moóca, o Belénzinho e o Pari, o Cambuci e o Canindé, a Barra Funda e as vilas operárias da Pompeia e da Vila Romana, os quilombos urbanos como a Saracura, os barracos da Casa Verde, e a zona de (r)existência preta das Cinco esquinas, árabes do Levante preenchiam as cercanias do triângulo histórico com tecidos importados ou perambulando as ruas periféricas vendendo produtos cotidianos. Mas nem só de mascates a imigração árabe foi construída. Para além do mito do self-made man, intelectuais que viam os negócios como uma inevitabilidade dos tempos produziam, também, pensamento.
Em Piratininga, e no Brasil e nas Américas da Belle Époque, pululavam periódicos em árabe. Entre diversas correntes políticas a colônia se dividia entre intelectuais e demagogos: alguns formados pelas tradições mais liberais da época, outros fixados no nascente discurso nacionalista. Hoje, essa memória é amplamente desconhecida, quando não deliberadamente ignorada. E não fosse por aqueles - muitos, inclusive, não-árabes - que buscam um traço de existência intelectual passada, talvez não nos chegasse, hoje, a possibilidade de reavivar uma tradição que começa, a pequenos passos, a contra-atacar as narrativas hegemônicas que, não raro, fazem um desfavor àqueles comprometidos com este processo.
Dentre as inúmeras publicações do começo do século XX, a Al Jaliah foi uma que deixou um legado tímido: não muitos a conhecem, mas quem a conhece lhe devota grande admiração.
Atualmente, parte de suas cópias podem ser conferidas na biblioteca Jafet da Universidade Americana de Beirute. De algum modo, a Al Jaliah parecia ter algo de diferente. Não se tratava apenas de uma revista de novidades e notícias, mas, antes, uma revista reflexiva, bem-humorada e combativa. Participaram da Al Jaliah nomes como Daoud e Taufic Kurban, Mustafa Lutfi al-Manfaluti.
Fundada em 1922 por Sami J. Racy, nascido em 1880 em Saida, a Al Jaliah perdurou por 7 anos, encerrando-se dois anos após a morte de seu fundador.
No contexto da época, educado no Colégio Sírio, posteriormente Universidade Americana de Beirute, Sami e seus irmãos traziam consigo a carga de uma formação de elite, a par e em meio aos debates e referências mais contemporâneas da época. Provavelmente pela vivência de Sami e seus irmãos, casando-se fora da comunidade, abrindo mão das pressões culturais e comunitárias e por certa manutenção da particularidade árabe, a revista problematizou as questões presentes da época: o advento de uma sociedade nova, a relação e os deveres dos árabes do Levante a partir de um referencial comum; a demanda por uma nova concepção de cultura árabe a partir da perspectiva diaspórica.
Essa verve confrontativa de Sami e seus irmãos é o ponto de partida desta nova Al Jaliah. Por ela, não buscaremos explicar. No mundo contemporâneo conectado, abundam fontes e acesso às mais diversas informações. Temos a dizer àqueles que nos queiram ler, ver e escutar. Não queremos reforçar os estereótipos, justificar as particularidades ou escusar os problemas. Queremos, antes, expor, seja o que for, que forneça a todos o potencial para se aproximar de questões prementes do mundo contemporâneo a partir de uma região que, por motivos infelizes, tornou-se xadrez sem fim da política internacional. Fica claro que o desafio é grande. Não basta a tarefa, cumpri-la-emos a partir de perspectivas complementares não raro distorcidas, aqui ou lá: o local e o diaspórico. Retomando as bases dos periódicos árabes brasileiros, construiremos a Al Jaliah abordando os mais diversos aspectos da realidade árabe a partir dos países que a compõem e daqueles que herdaram na memória viva as histórias desse mundo.
Estamos aqui para expandir referências, criar conexões e redes e levantar questões.
Assumimos, assim, nossos compromissos, árabes e árabe-diaspóricos, da mesma forma e com a mesma intensidade que muitos de nossos antepassados. Convidamos todos a trilharem conosco essa senda, por caminhos que nós mesmos apenas começamos a abrir. A todos e a todas, expressamos nosso sincero manifesto. Entendam-no como quiserem, mas não digam que não avisamos:
1 - A Al Jaliah é uma iniciativa independente voltada para todos aqueles que veem na arte e no pensamento formas de expressão críticas que nos posicionam no mundo de forma reflexiva, responsável e combativa.
2 - Nada, absolutamente nada, justifica o autoritarismo ou, pior, desejá-lo. É possível compreender processos sociohistóricos e, ao mesmo tempo, ter uma posição autônoma perante os mesmos, sem justificar o exercício do poder coercitivo como um mal menor.
3 - Combateremos o orientalismo como uma expressão parelha a qualquer forma de discriminação e racismo. Representações exóticas dos povos árabes serão não somente negadas como denunciadas, caso seus autores não aproveitem a chance de se retratar.
4 - Não entraremos em disputa com grupos que buscam protagonismos representativos por desejo de exercício de poder, seja na academia, no meio cultural ou qualquer outro meio institucional.
5 - Entendemos o mundo árabe como uma região criada na longa duração a partir da difusão da língua e expressões advindas da península arábica por meio da conquista das regiões que hoje compreendem os chamados Oriente Médio e Norte da África. Nisto, incluem-se as contradições e os problemas advindos de relações étnicas, socioculturais e históricas que permitem o uso da noção de “mundo árabe” como uma categoria de pensamento que, assim sendo, não é capaz de resumir a complexidade e o sentido das múltiplas realidades de gênero, sexualidade, etnia, racialização, religião, língua e classe na região.
6 - A Al Jaliah servirá ao desenvolvimento e difusão de conhecimento a respeito da(s) realidade(s) árabe(s) em três idiomas, criando redes e mirando a suficiência de recursos para continuidade e expansão de sua produção.
7 - A Al Jaliah está aberta à incorporação de indivíduos prontos ao auxílio de tarefas editoriais, sempre a partir de uma negociação aberta e consoante as possibilidades materiais do projeto
8 - Finalmente, a Al Jaliah conclama para que todos aqueles, árabes, descendentes, diaspóricos ou nenhuma dessas categorias, que se sintam ignorados, sub-representados, silenciados ou explorados, entrem em contato e divulguem suas experiências, trabalhos e pensamentos.
Os editores,
São Paulo, Brasil
2024