Sinais Desonrosos: o Ativismo Pró-Árabe e a Classe Média Ilustrada.

Gustavo Racy

[...] quem quer que viaje o mundo vê, claro como o dia, que não importa quão meritória uma nação, os males de seu povo podem arruiná-la
— Al-mua'llim Boutrous Al-Bustani

Após mais de um ano do disparo do genocídio total dos palestinos promovido pela Entidade Sionista, minha cidade natal, São Paulo, se perfaz como um polo de intensa discussão e ativismo pela causa Palestina. Desde 7 de outubro de 2023, inúmeros foram os eventos, falas, palestras, conferência e festas pela resistência palestina, contra a Entidade Sionista e pela solidariedade árabe-brasileira no país que abriga a maior diáspora histórica do Levante.

É uma pena, porém, que as discussões sobre a Palestina continuem se dando a partir da participação de certas pessoas que se tornaram vozes hegemônicas no tratamento do genocídio em curso há 80 anos. Tratar deste assunto me parece politicamente fundamental, já que é uma contradição em termos, ainda que não surpreenda nisto que se convencionou denominar de "esquerda" em nosso contexto. 

Há inúmeras pessoas dos movimentos de atuação pró-Palestina que não hesitaram em se aproveitar de situações deploráveis às quais foram sujeitos refugiados e imigrantes. É o caso do local (e, direta ou indiretamente, pessoas que o frequentam) de muitas reuniões e eventos pró-Palestina em São Paulo, um local no tradicional bairro da Bela Vista que se apresenta como local de resistência, mas é, no entanto, um local de ampla exploração de pessoas em situação de refúgio, com diversos processos nas costas por constantes assédios ou abusos contra funcionários (refugiados ou não) e, não raro, contra clientes, especialmente mulheres, a quem xingam, em árabe, plenamente seguros de que brasileiros não entenderão. E isto tudo enquanto pregam “uma cultura de paz”. Para pessoas que convivem neste ambiente, isso tudo é de amplo conhecimento. Alguns, acho que com a desculpa da Realpolitik e outros acho que por moda, porém, continuam frequentando o espaço e reverberando a fala de pessoas que se aproveitam de situações deploráveis para ampliar sua voz e garantir seu protagonismo. Muitas destas pessoas, além de tudo, inclusive acadêmicos “especialistas" e políticos, se servem desta situação para falar o óbvio sobre uma questão que, pasmem, se tornou uma tendência, um trending topics do Twitter, que creio que faça com que todos se sintam mais humanos e "do lado certo da história", e, por isso, engendra ampla movimentação.  

Infelizmente, o que creio que vozes como estas, frequentes nestes debates, fazem, é manipular tendências e expectativas que reproduzem uma leitura burguesa, utilitária e empobrecida sobre as possibilidades, necessidades e demandas do povo palestino, seja em seu próprio território, seja em diáspora. A amplificação destas vozes por meio institucional só engendra uma discursividade problemática, aliada a uma atuação política autoritária e excludente, sempre mascarada, que permite que uns, e não outros, falem, e que solapa a multiplicidade sob a égide do pragmatismo, como se, por serem todos pró-palestina, devêssemos ignorar os abusos por conta de um fim maior. A velha dialética dos meios e fins, como é clássico entre órfãos de Churchill, de um lado, e Lênin, de outro, retorna ao velho e mal-entendido adágio maquiavélico.

Muitas das personalidades, acadêmicas, principalmente, que têm sido elevadas a autoridades sobre a questão palestina estão distantes, intelectual e eticamente, do nível mínimo necessário para se lidar com a luta palestina, síria ou libanesa em suas dimensões e complexidades reais.

Os motivos para o sucesso destas manifestações, porém, não são complexos. São Paulo, que conta com o maior contingente de descendentes árabes no país, há muito ignora a parcela intelectual deste passado, focando-se na memória do materialismo que fez da metrópole o que ela é economicamente. Algo na percepção paulista, paulistana e brasileira em São Paulo, apregoa a memória como um misto de orgulho e pretensa humildade que, não raro, beira o anti-intelectualismo. A reação a isso, e seu resultado infeliz, é um ativismo ultra comprometido com a aparência: não basta ser ativista, apoiar uma “causa” correta, é preciso mostrá-lo; mostrando-o, angaria-se um capital social que atesta a tendência correta da conduta. Não basta apoiar a Palestina, é necessário usar uma kuffiyah, frequentar espaços de discussão, promover e fazer parte de um movimento coletivo que reproduz, sem demais nuances, as posições de uma tendência pretensamente certa (posto que à esquerda, claro), que garante uma boa consciência; e isto a despeito de seu custo ser tornar Edward Said algo tão distorcido quanto um kibe de boteco. 

Ora, o destaque dado à Palestina no último ano engendrou uma onda de interesse geral pelo país. Em pouco tempo, vozes se elevaram, conquistando destaque, como verdadeiros arautos do sentido desta causa. Tais vozes são ouvidas irrestritamente sem a mínima preocupação com seu entorno. Pouco importa, parece, que possa haver um ou outro problema nas condutas ou no contexto geral da produção dos discursos, afinal, ninguém é perfeito. A isenção de responsabilidade, porém, toca numa questão central das formas de organização, expressão e formação de sentido desta parcela política que, como dito acima, prefere ignorar a complexidade de uma situação em nome de um fim estabelecido como justo, correto ou, porque isso se adequa à nossa cultura essencialmente religiosa, bom. Que continuemos consumindo e reproduzindo discursos e seus invólucros contextuais para estarmos a par do momento é uma das piores posturas que se possa esperar de um estrato populacional “intelectualizado”, com acesso informacional e educacional. E no entanto, ele parece ser simplesmente aquilo que se espera de uma sociedade travada entre concepções antiquadas de esquerda e direita a partir dos, também antiquados, conceitos de revolução e democracia, promovidos, em ambos os lados, por um revisionismo histórico tosco. 

Haddad passando-se pelo “Príncipe Gustavo”

Talvez, para ilustrar de forma mais clara, valha a história (e sua repercussão) de Nagib Haddad. Nagib Constantino Haddad chegou ao Brasil no começo do século XX, após ter fugido dos EUA e ter sido expulso da Argentina. Aqui, fingiu ser o príncipe herdeiro da Albânia, Gustavo, sendo noticiado como tal em diversas manchetes paulistanas. Haddad foi um trambiqueiro: dava golpes, incitava violência entre a comunidade, chegando a atirar em patrícios; tudo isso noticiado nos arquivos da imprensa oficial do estado. Em 1914, Haddad encontrou quem o enfrentasse de fato, levando dois tiros no Café Paulista. O motivo dos disparos seria uma defesa da honra da cunhada dos autores dos disparos, contra quem Haddad direcionava assédios, a ponto de ameaçar a vida de sua família. Os autores foram inocentados, Haddad sobreviveu, como havia sobrevivido a uma agressão em 1912 e sobreviveria a outras até a década de 1930, e seria mais tarde preso por proxenetismo e, depois, pelo assassinato de Toufik Khoury. O decisivo nesta história, e o que explica o ponto central de nossa questão, é a resposta da comunidade ao acontecido. Em certas cartas trocadas entre famílias da diáspora em São Paulo, vê-se explicitamente que a mulher, e não Haddad, fora responsabilizada pela situação. Sendo de fora da comunidade, muitos acreditavam na palavra de Haddad de que ela teria feito investidas, e isso a despeito das notórias e consistentes tramoias do sujeito em meio a toda comunidade. Mesmo levando seus golpes, sendo roubados e agredidos, muitos escolheram acreditar em Haddad, pois, afinal, ele era árabe, como eles. Fora alguns outros, indivíduos exógenos, que se relacionavam com a comunidade e se embrenharam nas discussões sobre o acontecido.  Aqueles que escolheram desafiá-lo, por sua vez, romperam com uma certa ordem, criaram um problema de algum modo maior. Perturbando o comum andamento da coisa, romperam com o pacto silencioso que mantinha e reproduzia o status quo.

Notícia do Daily Illinois de 5/11/1932

É esta lógica que parece se reproduzir na lida da questão Palestina hoje entre intelectuais, espaços públicos e comunidade. É importante, antes de tudo, fazer parte, aparentar e aparecer num meio que consegue, de um modo ou outro, se estabelecer como representante de algo. Desafiá-lo significa romper uma ordem, ignorar lugares de fala ou ser uma voz que não entende que “não é o momento de criticar”. Curiosamente, muitas destas vozes a que nos referimos acima, são da comunidade diaspórica, enquanto a audiência é, de algum modo, uma leva não relacionada à herança árabe que surfa na onda dos dizeres e fazeres a partir de um comportamento de rebanho. Com isso, reificam as representações da Palestina - e do árabe - a signos superficiais de valor cultural mercadológico: a kuffiyeh, a caligrafia, os “traços”, as fotos de família. Quando descendentes, redescobrem por aí sua herança, quando não, também reivindicam uma relação a partir de todos os elementos orientalistas que dizem condenar. Retomando o trecho de Foucault que é sempre deixado de fora quando citado para justificar o desbunde de classe média no carnaval, a verdade parece ser que o desejo se liga à realidade a partir da fuga nas formas de representação. 

O mesmo pode ser dito quanto à contínua agressão sionista ao Líbano. A partir daí, a retórica do Eixo da Resistência se torna voz pretensa à unanimidade referencialmente ao estado das coisas na região: contra o imperialismo yankee e seu principal representante, Israel, uma guinada radical resistente, encabeçada pelo Irã, por uma frente, e Rússia, por outra, se constroi por uma narrativa heroica que não é nada senão ocidental; e velha desde o fim da poesia épica. Da mesma forma, a retórica do imperialismo, como Ouroboros, alimenta catástrofe após catástrofe por uma síndrome do mal menor, ou do binarismo que opõe um autoritarismo por outro. Sem se desligar de suas partes constitutivas, a retórica anti-imperialista, que insiste em ver no imperialismo um estágio superior do capitalismo, e não um de seus elementos essenciais, alimenta uma resistência eterna que não visa a liberação, mas, no mais novo jargão adotado pelos ativismos: o sumud

Neste movimento, os princípios de apoio à resistência contra o sionismo se conectam, inalienavelmente, a uma incapacidade pela reflexão autônoma, apoiada em fontes e sem desconsiderar a intuição e a afetividade. O assassinato de Nasrallah, é um exemplo factual: o lamento por sua morte se deu não porque foi coordenada por Israel, mas porque, com isso, ter-se-ia promovido um duro choque a uma das principais forças de resistência. Mas ora, o que é essa resistência se, no país vizinho, empregou-se como aparato ideológico de um estado autoritário, falido e atrasado? A resistência é conjectural, e meios autoritários levam a fins autoritários. A compreensão de um fenômeno como o Hezbollah não se encerra num discurso de desejo que se edifica por meio de bases imperativas do jogo político, somente, mas pelas condições reais de existência que o possibilitam, bem como pelo modo em que sua existência afeta tais condições. Num país que não realiza um censo desde a década de 1920, recorrer à possibilidade estatística de que hoje o Líbano possua uma maioria muçulmana xiita, não sunita, e que a popularidade do Hezbollah - e, com isso, sua validade - seja garantida pelos resultados eleitorais é expressão, somente, de quem é incapaz de se desligar de imperativos positivistas de compreensão de uma dada realidade. 

Como comentou Wander Wilson em nosso número 0, a democracia nunca foi contrária ao fascismo. Podemos dizer, por consequência, que tampouco foi avessa ao autoritarismo e ao fundamentalismo. Uma das reivindicações das novas gerações libanesas é, exatamente, que se encerre a governamentabilidade sectária e que as pessoas superem a tendência de recorrer a senhores da guerra em eleições; senhores estes que, como as Forças Armadas e a classe dominante durante a ditadura no Brasil, nunca foram responsabilizados por seus crimes durante a Guerra Civil. Constroi-se, com isso, uma narrativa com ecos de Guerra Fria, em que dois campos se contrapõem às custas da exploração dos recursos, sejam eles humanos, sejam eles “naturais”, de nações periféricas e satélites. O discurso da esquerda que se reúne nas festinhas e festivais regados a música, debates e muita azaração, é uma espécie de eterno retorno do privilégio; privilégio este de quem, como o observador incauto do século XIX, produz um daguerreótipo que lhe possibilita, a seu bel-prazer, admirar e analisar, de seu ponto de vista, capturando o que lhe interessa. Este processo não é diferente daquele identificado por Ariella Azoulay sobre os museus, que roubam artes de outros somente para devolver-lhes, anos depois, explicando-lhes o sentido real do que um dia foi sua produção. 

Estranhar, alienar, é este o sentido que a inteligência atual, em sua maioria, seja em rodas ativistas partidárias, seja em processos autônomos, seja na academia por meio das ciências sociais ou da psicanálise, seja nas festas ou nos festivais celebrativos do subversivo ou do resistente, promove. Estranha-se quando se destitui a voz dos produtores reais de condições efetivas de mudança ou crítica, expropriando os sentidos da construção longa e demorada seja da organização, seja da reflexão, justapondo-as a sentidos fechados e simplificados que oferecem, junto a si, o deleite dos sentidos que engendra o sentimento de pertencimento. Ao hegemonizar vozes e locais específicos, aliados, ainda por cima, aos dispositivos que são as redes sociais, efetiva-se uma alienação ativa que adormece os sentidos e os pensamentos para o confronto com a realidade, dura tal qual é, incompreensível, afetivamente, tal qual é. Isso explica, talvez, que um famoso ativista consiga falar da Palestina nas redes sociais de forma doce e com um sorriso no rosto. Quiçá imagine que, como Che Guevara, endureceu sem perder a ternura. Concretamente, porém, é alguém cuja pretensa indissociação entre sua própria vida e a Palestina, ao menos na forma em que produz seus conteúdos digitais, se mostra ridícula. A necessidade de “mostrar a verdade”, essa incessante demanda pela prova visual - mais uma herdeira do positivismo - desnuda a banalização do bem, que se torna, não algo em si, mas um meio, seja ela de atenção narcisista, seja de satisfação econômica...

Em meio a tudo isto, o parlatório incessante sobre o chamado Oriente-Médio, encontra respaldo por estratégias políticas que espelham aquilo que Gilbert Achcar denominou de Nova Guerra Fria. Não há, nem tem havido - como notaram os punks - futuro. Parece ser um desejo profundo o de habitar as periferias da realidade não porque não queremos ser brancos, europeus, hegemônicos, mas, antes, precisamente porque queremos, e porque sabemos que o melhor modo de fazer isso é a partir da nossa própria sala de estar, se possível alugando um terreninho ao lado para um amigo com a pele um pouco mais escura que a nossa. Os elementos que se expressam na inteligência atual de esquerda, a começar por São Paulo e sua classe média ilustrada, ou por muitos que, vindos de baixo, aspiram um lugar ao sol nas casas de campo dos ativistas do centro da cidade, infelizmente, misturam as lutas com as quais se deparam diversas coletividades distintas, filtrando-as a partir do programa do partido ou de uma vanguarda que impõe as medidas e os limites do diálogo, bem como os fundamentos aceitáveis, ou não, das disputas, que poderiam ser, inclusive, construtivas: preferem debater com sionistas a debater com árabes de uma visão mais crítica, complexa, ou nuançada - e por isso, inclusive, mais realista, no sentido político. Debater com um ou com outro renderia capital social; a diferença, porém, é que, enquanto um sionista “derrotado” infla nosso ego, o árabe que desafia o discurso hegemônico tal qual acima explicitado, interfere num circuito tão automático, tão normalizado, que se torna insuportável: o de exame de consciência. Isto não poderia expor, de maneira mais clara, de que modo o árabe, esta construção chamada de “árabe”, é capaz de subtrair de mentalidades ocidentais o componente mais básico, mais elementar: o de a subjetividade árabe, com todos os seus problemas, ser constituída a partir de uma existência coletiva da terra, da língua, do hábito; ela é uma forma. A outra, a pseudo-ocidental da nossa colônia, é baseada nos dados imediatos do próprio umbigo, ou de algo mais abaixo. E aquilo, ou aqueles, que não nos rendem prazer, devem ser reprimidos. Talvez isto ajude a explicar a fixação da psicanálise como salvação entre millenials e a geração Z, inclusive.

Abordando o lado intelectual destas questões tão problemáticas e complexas como o genocídio palestino, tentando tocar a forma tomada pelas ditas manifestações de apoio, resistência e solidariedade, apontamos que o problema não é, de fato, hermenêutico. Não se trata das interpretações ou das leituras das situações e da conjuntura contemporânea. Mesmo quando são problemáticas ou erradas, todas elas compartilham de um movimento de preocupação intelectual para se compreender o mundo, algo que, mesmo se nem sempre válido, pois apresenta seus perigos, é parte indissociável da produção de pensamento. Tratamos, porém, dos mecanismos pelos quais se tornam válidas e reverberantes certas interpretações em detrimento de outras, principalmente quando se alçam ao grau de verdadeiras expressões de um povo ou de uma reflexividade indubitável. Esses mecanismos, dita, em parte, nossa intuição, estão vinculados a impulsos egoístas e autossatisfatórios movidos por um comportamento de bando que deseja, primeiro, atingir um grau de satisfação pela mera presença e aparência. É um fenômeno de mera vida, que é sempre aquela que é capturada pela máquina capitalista.

Durante todo o tempo, as mais variadas informações estavam à disposição, seja pela facilidade de se acessar a mídia internacional e os diversos meios de comunicação, seja pela facilidade em se encontrar referências mais densas e estudos de caso mais precisos, através da internet. O que explica o súbito interesse no assunto? É porque muitos de nós vivemos, pela primeira vez, o desenrolar de um genocídio em tempo real, transmitido 24 horas pelos meios de comunicação? E o genocídio dos povos originários? E o genocidio dos negros? Esses já são lugares-comuns em que se esgotaram as possibilidades de atenção e, por isso, partiu-se para outra? De que modo estamos nos adentrando nas pautas por meio da vivência em lugares e meios que são contrários à própria pauta? De que modo podemos nos tornar agentes em uma questão global sem nos tornarmos cúmplices de vozes que, por sua conduta, são como os algozes? Estranha coincidência que, dentre todas as diásporas árabes, a maior delas, a do Brasil, é pouco mirada pelos árabes do Levante. O que temos a oferecer quando a história da intelectualidade árabe no país, marcada por inúmeros indivíduos, é silenciada tanto pela falta de memória quanto pela presença pungente de pessoas que, como há cem anos, promovidas pelo dinheiro, impedem a consolidação de um pensamento crítico e complexo sobre os problemas que nos afligem, arrastando com elas uma audiência que reverbera seus dizeres em coro por fórmulas prontas e jargões? E nem mesmo isso é novidade. Fosse a intelligentsia brasileira um pouco mais curiosa, e soubesse ela consultar até mesmo a Wikipédia, saberia que essa observação já fora feita no crítico Século XIX, no Levante, dentre outros por não menos que al-mu'allim Boutros Al-Bustani.

Sobrepondo-se aos fins, os meios que se impõem no ativismo local pela causa palestina se mostram impulsos de um pragmatismo repleto de interesses que empobrecem não só o debate, mas a fábrica do convívio social que permitiria uma mudança ética direcionada aos problemas políticos que vão muito além da conjuntura, tocando a estrutura de sentimentos e as visões de mundo que permitiram uma mudança radical de comportamento entre aqueles que se aliam, destarte, a uma causa justa. Neste movimento, a solidariedade, sem dúvida, não é uma palavra que muitos entendem de maneira pragmática, a despeito de todo pragmatismo político que pregam.

Antes de terminar, contaremos um outro caso, ocorrido com o Sheikh Abu Ali Al Sayyagha e relatado nos anais de Jdeidet Marjayoun:

O Sheikh Abu Ali al Sayyagha era um dos homens mais honestos de seu tempo. Ele tinha o dom peculiar de identificar imediatamente o caráter de uma pessoa assim que a conhecia. Se era sábia ou tola, generosa ou avarenta, honesta ou não; tudo isso ele sabia pelo mero vislumbre do rosto da pessoa, uma ciência à época conhecida como fisiognomia.

Um dia, antes da invenção dos carros, o Sheikh caminhava de Hasbayya a Jdeidet Marjayoun.

Ao chegar na intersecção de Souq El Khan, o Sheikh avistou um homem montado num burro, seguindo na mesma direção. Quando o homem se aproximou, o Sheikh fitou seu rosto e disse para si mesmo: “Não gosto dele… este não é um homem honesto”.

O homem baixou do seu burro e foi em direção ao Sheikh. Beijando sua mão em reverência, perguntou: “Para onde vais?”. “Para Jdeidet Marjayoun”, respondeu o Sheikh. “Que sorte a minha. Também eu vou para lá”, exclamou o homem, insistindo que o Sheikh montasse em seu burro. 

O Sheikh hesitou, pensando por um momento. “Como pode um gesto tão nobre vir de alguém como ele?”. Deixou que seus olhos fitassem o rosto do homem mais uma vez, vendo apenas sinais de desonestidade e desculpou-se, então, de forma educada, dizendo: “Eu agradeço, mas prefiro andar”. Mas o homem voltou a insistir: “É impossível que andeis enquanto eu cavalgo. Alguém que conhecemos pode passar e dizer que sou rude e mal-educado. Não, não, deveis montar, eu insisto”.

Contra sua vontade, o Sheikh finalmente montou o burro. A cada vez que parava o burro, na tentativa de desmontar, o homem se punha em seu caminho, ameaçando abrir a barriga do burro com uma adaga caso o fizesse. Durante todo o percurso, o estranho falava de sua devoção e respeito pelo religioso, algo que fez com o que Sheikh se preocupasse ainda mais: “Para mim, este homem parece infernal, mas seu comportamento mostra que é um homem de honra. Eu acredito que tenha entrado em certo lio. Devo reconsiderar a forma pela qual julgo as pessoas. Se meu julgamento deste homem estiver errado, então também julguei outros mal… este é um problema sério, pois posso perder a confiança das pessoas em mim”.

Ao chegarem, finalmente, a Jdeidet Marjayoun, o Sheikh desmontou do burro, agradeceu ao homem e começou a se distanciar. Antes que pudesse dar mais alguns passos, o homem correu atrás do Sheikh: “Vossa eminência não me pagou a taxa do burro…”. O Sheikh respondeu: “Claro… quanto queres?”. 

“Meio Majidi”, disse o estranho. O Sheikh fitou novamente o rosto do homem e disse: “Escutai bem, meu amigo: a verdade, e só ela, prevalece no fim. Eu sabia a pessoa que eras assim que te vi, mas me causaste preocupação sobre como leio as pessoas. Eis um Majidi inteiro. Estou feliz por não ter me enganado sobre vós”.

O estranhamento do intelecto e a reificação dos signos e símbolos atestam a mais pura falta de preocupação consistente com as causas não só Palestina, mas levantina em geral, principalmente síria e libanesa. Isso não significa, mais uma vez afirmamos, que desejamos o silenciamento das falas, o banimento mesmo do intelectual interesseiro, do intelectual afã do conchavo, etc. Tanto mais se individualiza o domínio  do pensamento e da prática, tanto mais se hierarquiza e se silencia. Tanto mais, ainda, a prática se transveste por uma falsa alegria oswaldiana, desacreditando o pensamento, mais se sedentarizam as formas de articulação e resistência. A recente autoridade proferida por muitos, oportunistas acadêmicos ou digitais, busca para si um valor de Verdade que nos apresenta a realidade de forma opressora, silenciando os agendamentos móveis dentro e fora da diáspora.

No que diz respeito aos fenômenos aqui tratados, escrevemos para apontar àqueles que nos lerão, como faremos mais vezes, que há algo de podre no ativismo que se constroi pela representação reificante que aliena, que ignora a dialética básica do desenrolar histórico, e que não é difícil identificá-lo. Às vezes, inclusive, como sabia o Sheikh Abu Ali, eles se expressam nos rostos, pois “sinais honrosos sempre aparecem nos rostos de pessoas honráveis”. 


Gustavo Racy é doutor em antropologia pela Universidade da Antuérpia. Atualmente em estágio pós-doutoral pela UNIFESP, foi sócio-fundador da sobinfluencia edições, tendo traduzido títulos de Guy Debord, Louise Michel e Walter Benjamin, entre outros. Publicou artigos em diversos periódicos nacionais e internacionais e pesquisa temas de filosofia política, história cultural e social e cultura visual. É um dos diretores da Al Jaliah.

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