Contra uma psicanálise sionista

Marcus Vinicius Neto Silva


Imediatamente após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, começaram a surgir declarações e artigos de psicanalistas sobre a violência do Hamas, pedindo moderação “dos dois lados” e esperando uma resolução do conflito pela via da palavra, ou seja, uma expectativa de saída diplomática. De modo geral, consideravam a questão complexa, com uma longa história que devia ser compreendida antes de se tomar uma posição. De partida, contudo, condenavam a violência (a violência da colonização israelense não era incluída na condenação, vale dizer) e lamentavam que as pessoas estivessem se posicionando de forma supostamente apressada. Chistian Dunker (2023) teme que isso acabe por reforçar os termos pelos quais o problema se formou; Danel Kupermann (2024) acusa um “sequestro dos espíritos”, que impediria o livre uso da nossa capacidade crítica e levaria a posicionamentos pautados por questões internas, inconscientes.

O que nenhum dos autores revela abertamente, talvez por acreditarem que sua posição os coloca fora das dinâmicas que pretendem denunciar, é que eles próprios colaboram para validar a visão de mundo sionista. No caso de Dunker (2023), isso se dá ao insistir que se deva “suspender, ainda que não por tempo indefinido, o juízo sobre os conflitos” e, apenas três semanas mais tarde, comparecer em um evento sionista promovido pelo Instituto Brasil-Israel, que acusava Roger Waters de ser antissemita. Ele conclama a uma consideração da história do “conflito”, para em outro momento afirmar que é preciso que se retorne aos acordos de Oslo (ignorando décadas de ocupação). Dunker chega até mesmo a questionar o lema “From the river to the seaem sua participação no evento, e mais tarde, depois de receber críticas, afirma que criticava o uso desse lema pelos fascistas para justificar o extermínio de palestinos. A estratégia de Dunker parece ser a de querer apoiar os dois lados, ou dizer coisas contraditórias em espaços diferentes, se colocando de fora ou acima da questão.

Outra estratégia tanto de Dunker quanto de Kupermann é psicologizar as questões. Dunker (2023) evoca a ideia do imaginário em Lacan para criticar uma suposta simetria em ação quando alguém toma uma posição nessa questão, enquanto Kupermann (2024) vai tomar o conceito de identificação ao agressor para explicar também essa tomada de posição. Nos dois casos, o efeito é neutralizar politicamente o posicionamento, tornando-o efeito de um conflito psicológico que diz respeito apenas aos sujeitos que se manifestam. E, curiosamente, esse tipo de psicologização acaba recaindo com maior frequência sobre os defensores da causa palestina.

Sociedades psicanalíticas internacionais também emitiram notas, reproduzidas pelas associações brasileiras que, em geral, concordavam com as posições do governo israelense, de forma acrítica. A International Psychoanalytical Association (IPA) “condena o ataque massivo e sem precedentes”, e diz que isso “é uma lembrança dos momentos mais sombrios da história da humanidade”, completando que condenam profundamente “toda a violência”, sem nunca mencionar os palestinos – a não ser ao desejar que o “civis de ambos os lados” possam regressar a “uma busca civilizada pela resolução de problemas”. A Associação Mundial de Psicanálise “afirma sua total solidariedade com o povo israelense, vítimas de massacre de civis em massa, acompanhados do sequestro de mulheres e crianças mantidas como reféns”. Não há menção a palestinos, nem de forma indireta. Enfatizam também a condenação do Hamas e declaram: “Independentemente de qualquer contexto político, essas práticas têm como tal um indiscutível caráter terrorista e constituem crimes contra a humanidade”.

Nas duas notas, vemos repercutir quase integralmente a retórica sionista, que quer fazer seu sofrimento ser compartilhado por toda a humanidade enquanto apaga completamente os palestinos, que não surgem como sujeitos a se considerar;, sua existência não é sequer mencionada.

Todos esses posicionamentos carregavam uma contradição profunda: eram críticos de quem tomava partido da causa palestina ao mesmo tempo em que se colocavam como exteriores à questão, julgando apenas a violência dos “terroristas”. Seria necessária muita ingenuidade para levar a sério essa posição.

Nesse cenário, me vi obrigado a enfrentar meu incômodo com a posição pretensamente apolítica da psicanálise, com as leituras pouco criteriosas da realidade, ancoradas em teorias que acabavam sendo mobilizadas para defender um projeto de extermínio de um povo. Mesmo não sendo um especialista no tema, eu estava ciente de que havia uma extensa literatura sobre a colonização da Palestina por Israel, e não conseguia compreender por que quase ninguém dentre os psicanalistas parecia se valer disso nos debates.

O que inicialmente me pareceu desinteresse, indiferença ou mesmo incapacidade de se solidarizar com um povo apresentado pelos sionistas como violento, uma espécie de encarnação do mal, logo evocou em mim a lembrança das alianças feitas por psicanalistas e por instituições de psicanálise em outros tempos.

Clark University, 1909.

À frente (esq. para dir.), Freud, G. Stanley Hall, Jung. Atrás (esq. para dir.), Abraham A. Brill, Ernest Jones e Sándor Ferenczi.

Refiro-me ao posicionamento da já mencionada IPA a partir da ascensão de Hitler ao poder, em 1933. Naquela ocasião, para evitar uma perseguição da psicanálise pelos nazistas, a IPA resolveu pedir a seus membros judeus que se retirassem voluntariamente de suas posições no instituto de formação e na clínica de Berlim, articulando também a expulsão de Reich, comunista e psicanalista, para tentar apaziguar os ânimos do governo nazista. Todos esses esforços não protegeram nem a psicanálise, nem os nenhum psicanalistas. Ao longo das décadas seguintes vimos como essa tentativa estava equivocada. Vimos também como algumas figuras proeminentes, como Ernest Jones, então presidente da IPA, tentou desvincular a psicanálise da política, afirmando que “política e ciência, assim como água e óleo, não se misturam” (Glover, 1934: 487, tradução nossa).  Mais tarde, ele insistiria nessa ideia, declarando que as/os psicanalistas deveriam se manter distantes de discussões sociopolíticas (Freud, A., 1949). Ao final da Segunda Guerra, a IPA aceitou de volta os membros das sociedades psicanalíticas alemãs que haviam colaborado com o regime nazista sem grandes questionamentos ou um enfrentamento mais direto (Brecht, Friedrich, Hermanns, Kaminer & Juelich, 1985).

Há, portanto, esse histórico de cumplicidade com regimes genocidas. Os psicanalistas podem tentar ignorar, negar, mas a única forma de realizar isso seria apagando a história, o que foi alcançado em certa medida, uma vez que esse episódio tenebroso na história da psicanálise segue largamente desconhecido. Exatamente por essa razão, isso tem pouco efeito nos novos membros, que se beneficiariam de uma profunda reflexão sobre o papel político da psicanálise e suas instituições.

Da mesma forma, durante a ditadura militar no Brasil, instituições de psicanálise tentaram ocultar a participação de um membro em sessões de tortura e perseguiram aqueles que o denunciaram. Quando a IPA pediu informações às instituições brasileiras envolvidas, elas responderam que se tratava de uma campanha de difamação contra a psicanálise, negando a veracidade da acusação e protegendo o psicanalista torturador.

Partindo dessa constatação, de que as instituições psicanalíticas não são isentas e que não raro tomam partido daqueles que estão no poder, pareceu urgente reunir psicanalistas interessados em estudar a questão da Palestina e o projeto colonial sionista. Isso foi realizado inicialmente no formato de um grupo de estudos, que aconteceu entre setembro e dezembro de 2024. Nesse grupo, fizemos uma primeira aproximação através de alguns textos introdutórios: lemos Edward Said (tanto seu já clássico A questão da Palestina, quanto o menos referenciado Freud e os não-europeus), fizemos referências de forma recorrente ao Palestina: um século de guerra e resistência, de Rashid Khalidi, mas também nos detivemos em discussões sobre os fundamentos da nossa leitura anticolonial, baseando-nos em Os condenados da terra, de Frantz Fanon. Noutro momento, expandimos a discussão para pensar a obra de Ghassan Kanafani e sua importância para a literatura palestina e mundial. Por fim, nos concentramos numa leitura crítica da historiografia da psicanálise na região, profundamente contaminada pelo olhar sionista e pouco comprometida com lançar luz sobre a situação das/os psicanalistas palestinos. Para combater isso, nos debruçamos também sobre o importante trabalho de Lara e Stephen Sheehi, Psychoanalysis under occupation: practicing resistance in Palestine.

Ao final desse percurso, ficou evidente que seria necessário aprofundar as leituras e discussões, além de começar a produzir trabalhos questionando o posicionamento das/os psicanalistas com relação ao sionismo e à Palestina, e nos articularmos a grupos que já vem defendendo a causa palestina há mais tempo. E nesse sentido nos comprometemos a manter o grupo ativo, mas agora num formato mais próximo de um grupo de pesquisas que pudesse agregar interessadas/os e fosse um espaço seguro para debater não apenas a Palestina, mas também toda a região. O grupo é aberto e gratuito e se encontrará quinzenalmente ou mensalmente, com data de início ainda a definir. Nosso principal compromisso é levar adiante a tarefa, a nosso ver inescapável, de enfrentar o sionismo onde quer que ele se manifeste, em especial no interior do movimento psicanalítico, onde parece ser um tópico sensível.


Acesse o formulário de adesão ao grupo em: https://forms.gle/9H93rY4fHLZAE5u17


Referências

Associação Mundial de Psicanálise. Comunicados AMP - Ataque terrorista em Israel. Disponível em: <https://lapatriadelsinthoma.wordpress.com/2023/10/08/comunicados-8-de-octubre-2023/> acessado em 22 de outubro de 2023. 
Brecht, K., Friedrich, V., Hermanns, L., Kaminer, I., & Juelich, D. (1985). Here life goes on in a most peculiar way... Hamburg: Kellner.
Coimbra, C. M. (1995). Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do "Milagre". Rio de Janeiro: Oficina do Autor.
Dunker, C. Como a psicanálise pode intervir no conflito entre israelenses e palestinos. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2023/10/18/psicanalise-entre-israel-e-palestina---conflito---guerra.htm> - acessado em 19 de outubro de 2023.
_______. Resposta ao comentário de Jones Manoel. Disponível em: <https://youtu.be/cmizWUX_gt0?si=1qT5gGQhCH0nexQH> - acessado em 18 de novembro de 2023.
Freud, A. "Bulletin of the International Psycho-Analytical Association". Bulletin of the International Psycho-Analytical Association, 30, p.178-208, 1949.
Glover, E. "Bulletin of the International Psycho-analytical Association". The International Journal of Psycho-analysis, XV(4), p.485-534, 1934.
International Psycho-Analytical Association. Declaração da IPA: ataque do Hamas contra Israel. Disponível em: <https://pt.ipa.world/IPA/en/News/IPA_Statements/IPA_Statement__Hamas_Terrorist_Attack_on_Israel_October_2023.aspx> - acessado em 22 de outubro de 2023.
Instituto Brasil-Israel. Por que Roger Waters incomoda? Disponível em: <https://youtu.be/o3ZJiqW2YIk?si=dA9V_siZIwVLyBe6> - acessado em 11 de novembro de 2023. 
Kupermann, D. Freud no Oriente Médio: entre a vítima e o agressor. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/freud-no-oriente-medio-entre-vitima-e-o-agressor/> - acessado em 13 de fevereiro de 2024.
Lima, R. A. (2024). Psicanálise na ditadura (1964-1985). São Paulo: Perspectiva.
Vianna, H. B. (1994). Não conte a ninguém...: Contribuição à história das Sociedades Psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago.


Marcus Vinicius Neto Silva é piscólogo e psicanalista, doutor em Psicologia pela UFMG. Tradutor. Integra o Grupo de Pesquisa Independente sobre a Psicanális e a Palestina e o Grupo de Pesquisa de Coletivos e Clínicas Públicas de Psicanálise em Belo Horizonte.


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